O burocrata público como ator político -administrativo no contexto da crise da democracia: reflexões iniciais The public bureaucrat as political-administrative actor in the context of the crisis of democracy: initial reflections El burócrata público como actor político-administrativo en el contexto de la crisis de la democracia: reflexiones iniciales
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Recibido: 20 de noviembre de 2024; Aceptado: 15 de enero de 2025
Resumo
O objetivo deste ensaio é refletir sobre o papel político-administrativo do Burocrata da Administração Pública no contexto da crise da democracia. O burocrata público, aqui sinônimo de funcionário público, não é entendido como um ator neutro, puramente profissional, mas sim como figura da Administração, que é influenciada pela Política, e vice-versa. Sua atuação pode ser auto-interessada, voltada para o bem público, ou seguir estritamente a ordem política de acordo com o marco legal, a despeito dos resultados de tal ordem. Tal perspectiva, uma vez aprofundada, será contraposta ao contexto da crise da democracia. Para refletir sobre a situação do burocrata público no contexto da crise da democracia, se faz uso aqui, de modo adaptado, de indicadores para analisar se governos, eleitos democraticamente, adotam iniciativas autoritárias, estabelecidos por Levitsky e Siblatt (2018). A partir deles, discorre-se sobre a atuação do burocrata nesse contexto político. Como conclusão, se pode perceber que ele pode contribuir para resistência contra posturas que buscam minar procedimentos democráticos na Administração Pública. Ao mesmo tempo, se percebe que tal atuação tem que ter respaldo de outros atores do próprio Estado para contrapor iniciativas autoritárias por parte do Executivo.
Palavras-chave:
burocrata público, crise da democracia, ator político-administrativo.Resumen
El objetivo de este ensayo es reflexionar sobre el papel político-administrativo del burócrata de la administración pública en el contexto de la crisis de la democracia. El rol del burócrata o funcionario no se entiende como el de un actor neutral, puramente profesional, sino como el de una figura de la administración, que se ve influenciada por la política, y viceversa. Sus acciones pueden ser egoístas, estar orientadas al bien público o seguir estrictamente el orden político de acuerdo con el marco legal, independientemente de los resultados de dicho orden. Esta perspectiva, una vez profundizada, será contrastada con el contexto de la crisis de la democracia. Para reflexionar sobre la situación del funcionario público, en el contexto de la crisis de la democracia, utilizamos aquí, de forma adaptada, los indicadores para analizar si los gobiernos, elegidos democraticamente, adoptan iniciativas autoritarias, establecidos por Levitsky y Siblatt (2018). A partir de estos, discutimos el papel del burócrata en este contexto político. En conclusión, se puede observar que este personaje puede contribuir a la resistencia frente a posiciones que pretenden socavar los procedimientos democráticos en la administración pública. Al mismo tiempo, es claro que dicha acción debe contar con el apoyo de otros actores dentro del propio Estado para contrarrestar iniciativas autoritarias por parte del ejecutivo.
Palabras clave:
burócrata público, crisis de la democracia, actor político-administrativo.Abstract
The objective of this essay is to reflect on the political-administrative role of the Public Administration Bureaucrat in the context of the crisis of democracy. The public bureaucrat, here synonymous with public servant, is not understood as a neutral, purely professional actor, but rather as a figure in Administration, who is influenced by Politics, and vice-versa. Their actions may be self-interested, aimed at the public good, or strictly follow the political order in accordance with the legal framework, regardless of the results of such order. This perspective, once deepened, will be constrated with the context of the crisis of democracy. To reflect on the situation of public bureaucrats in the context of the crisis of democracy, we use, in an adapted way, indicator to analyze whether democratically elected governments adopt authoritarian initiatives, established by Levitsky and Siblatt (2018). From them, we discuss the role of the bureaucrat in this political context. As a conclusion, it can be seen that they can contribute to resistance against positions that seek to undermine democratic procedures in Public Administration. At the same time, it is clear that such action must have the support of other actors within the State itself to counteract authoritarian initiatives on the part of the Executive.
Keywords:
public bureaucrat, crisis of democracy, political-administrative actor.Introdução
O objetivo deste ensaio é refletir sobre o papel político-administrativo do burocrata da Administração Pública no contexto da crise da democracia, tendo como pano de fundo o contexto historico brasileiro. Dois pontos se fazem presentes. O primeiro é de que se entende a Administração Pública e, em consequência, os atores que trabalham nela e os que se envolvem com ela, como um conjunto de organizações e de atores, respectivamente, administrativos e políticos. Em especial, o burocrata público, aqui sinônimo de funcionário público, não é entendido como um ator neutro, puramente profissional. A perspectiva aqui é de que a Administração é influenciada pela Política, e vice-versa. O burocrata pode atuar tanto de modo administrativo quanto de modo político, e as vezes, de modo híbrido. Tal atuação pode ser auto-interessada, voltada para o bem público, ou seguir estritamente a ordem política de acordo com o marco legal, a despeito dos resultados de tal ordem. Tal perspectiva, uma vez aprofundada, será contraposta ao contexto da crise da democracia. Para concluir, são sugeridas questões para serem trabalhadas com intuito de se ter uma compreensão de possibilidades de atuação do burocrata público.
O ensaio, além desta introdução, apresenta uma seção que discorrerá sumariamente sobre a noção clássica da burocracia e do burocrata público. Depois, serão apresentadas abordagens correntes sobre o burocrata público. A seguir, a atuação do burocrata será objeto de reflexões com o intuito de direcionar um olhar sobre tal ator no contexto da crise da democracia. Por fim, se apresenta as considerações finais com questionamentos que se pretendem úteis para pesquisas futuras.
Metodologia
Este ensaio é de caráter teórico, a partir de pesquisa bibliográfica, a partir de livros e artigos científicos. relaciona a teorias que tratam da burocracia pública, o Estado e crise da democracia. Para tal também foram pesquisados artigos em sites como Google Scholar, Redalyc e CAPES periódicos, fazendo uso de descritores: burocrata público, servidor público, burocracia e política, crise da democracia, governos autoritários.
A visão clássica e críticas sobre a burocracia e o burocrata público
Max Weber é o autor que é referência no estudo sobre burocracia. Para ele, “o progresso em direção ao funcionalismo burocrático (…) é o critério (…) unívoco da modernização do Estado (…) Pelo menos é assim quando o Estado não é um pequeno cantão, (…), mas um grande Estado de massas.” (Weber,1999; p. 529). Como comenta Prates (2004, p. 110) a administração pública faz parte do processo de constituição do Estado Moderno, onde “a burocracia, com maior ou menor grau de racionalidade legal” se torna o modo de organização dominante. A emergência do estado Moderno é a referência principal da emergência da administração de caráter público. Tal progresso está ligado também ao desenvolvimento do Capitalismo. Como afirmam Singer et al., (2021, p. 116), o fortalecimento da capacidade de atuação estatal e o desenvolvimento capitalista caminham juntos.
Dentre as características do funcionalismo burocrático, segundo Weber (1999; p. 198-204), cabe citar as seguintes:
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“Rege o princípio das competências oficiais fixas, ordenadas, de forma geral, mediante regras” - divisão de trabalho, de poder de mando e seleção de acordo com qualificação regulamentada. Utilização de critérios e especialização técnica - processos universais de seleção - mérito e igualdade no processo.
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“Rege o princípio da hierarquia de cargos e da sequência de instâncias” - A hierarquia se dá tanto nas relações entre superiores-subordinados dentro da organização, como entre burocratas e políticos.
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O cargo se baseia na noção da estabilidade para garantir continuidade de políticas e funções (Weber, 1999; p. 203; Abrúcio e Loureiro; 2018, p. 26).
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As atribuições são estabelecidas por leis ou regulamentos, com clara descrição das ações necessárias para a realização dos objetivos estabelecidos. Isto serve para garantir duas coisas: a criação de protocolo de atuação e o estabelecimento de critérios universais para a prestação de serviços, que protegem os funcionários de pressão política e garantem tratamento universal aos cidadãos (Abrúcio e Loureiro; 2018, p. 26).
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Emprego público demanda salário fixo, carreira e garantias para que o funcionário possa ter autonomia na burocracia. Tal autonomia implica que o funcionário seja neutro, na entrada, e impessoal no exercício do cargo (Weber, 1999; p. 204; Abrúcio e Loureiro; 2018, p. 26).
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O funcionário público não detém a propriedade dos meios da administração (Prates, 2004).
Diante dessas características, deve-se fazer alguns comentários. O primeiro deles é de que a universalização de procedimentos contribuiu com a democratização do Estado, ao tentar superar práticas patrimonialistas/clientelistas na administração do Estado. Segundo Prates (2004, p. 113), a adoção de regra universalista em processo de recrutamento, para Weber, indicaria que “a burocratização racional-legal da sociedade ocidental foi uma condição sine qua non do sistema democrático-liberal de governo”. A presença de um marco legal-formal que prescreve a atuação do Estado é base da legitimidade do sistema democrático-liberal, atuação esta que segue o princípio de que todos os cidadãos seriam iguais diante da lei.
O modelo burocrático de administração pública, dominante ao longo dos anos 1945-1975, deu suporte ao Estado de Bem-estar social em países europeus. Nesse período, grande parte das políticas públicas forneceram direitos sociais aqueles que não eram proprietários de meios de produção. Os países nórdicos, onde tal experiência foi mais consistente, se tornaram aqueles com menor concentração de renda. Aqueles anos foram denominados de anos gloriosos (Singer et al., 2021).
Outro ponto é a prática do insulamento burocrático, aplicada por certos governos para isolar setores específicos da administração pública da influência política, com a finalidade de processos de políticas públicas mais eficientes e efetivas. Um ponto negativo disso foi a emergência de posturas tecnocráticas e de práticas não transparentes entre os burocratas insulados e parte da classe política, instalada no poder.
Weber (1999) já apontava alguns pontos críticos, que de um modo ou de outro foram assimilados por diferentes teorias e concepções de administração pública ao longo dos anos. A seguir, são apresentadas algumas dessas observações:
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No avanço da organização burocrática “cruzaram-se e se continuam cruzar com ela formas da estrutura administrativa, que se fundamentam em princípios heterogêneos (…)” Daí uma pergunta: Até que ponto tais formas obedecem às condições econômicas, “ou (…) outras circunstâncias puramente políticas, ou certas ‘legalidades intrínsecas’ inerentes à sua estrutura técnica criem para eles oportunidades de desenvolvimento” (Weber, 1999, p. 233). Neste caso, atualizando a discussão, de acordo com Pollit e Bouckaert (2011; p. 31-33), considerando que o avanço da burocracia, ao longo do século XX, possa ser entendida um processo de reforma da administração pública, tal processo é influenciado por um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, a decisão pela reforma se dá por meio de um processo decisório da elite governamental. Em geral, é um processo top-down e é afetado por variáveis técnicas e culturais, além de influências exercidas por organizações multilaterais, consultorias organizacionais e experiências de outros países, por exemplo. Além desses elementos, deve se considerar aspectos socioeconômicos (forças econômicas globais e mudanças sociodemográficas que afetam políticas socioeconômicas), o sistema político (pressão da sociedade e novas ideias sobre gestão que afetam as ideias políticas do partido/da aliança no poder), além de eventos fortuitos como desastres, escândalos.
Muitas vezes, as reformas não conseguem abranger todos os setores e, além disso, os resultados de tais reformas ficam distantes daquilo que era pretendido inicialmente. O que se percebe é que uma administração pública pode conviver com diferentes aspectos de diferentes modelos de administração pública, seja o burocrático, o gerencial e o da governança pública, com as suas respectivas culturas.
No caso brasileiro, como analisado por Nunes (2003) , governos adotaram diferentes gramáticas, seja o clientelismo, o corporativismo, o universalismo de procedimentos e o insulamento burocrático ao longo do século XX, a depender dos setores. o patrimonialismo persistiu e persiste, a despeito de reformas de orientação burocrática ou gerencialista, por iniciativas governamentais (Nunes, 2003). Mais recentemente, após a Constituição de 1988, se deu a criação e utilização de espaços deliberativos com envolvimento de representação da sociedade civil e do mercado, em processos decisórios referentes a políticas púbicas e direitos, em conjunto com atores governamentais e estatais. Tal postura indica a adoção de uma modernização participativa, que neste artigo, seriam elementos da abordagem da governança pública.
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“Como é possível, diante desta tendência irresistível à burocratização, salvar pelo menos alguns resquícios de uma liberdade de ação ‘individualista’ em algum sentido?” (Weber, 1999, p. 542). A preocupação de Weber está relacionada ao risco de a burocracia abafar as conquistas de direitos civis e políticos liberais até então. Atualizando tal preocupação, o que se tem é que por meio da noção de divisão dos poderes, outras burocracias, sejam do poder legislativo, seja do poder judiciário, ou dentro do próprio poder executivo, controlam as burocracias específicas do poder executivo.
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Diante do fortalecimento e da relevância da posição de poder do funcionário público, como criar poderes que pudessem limitar tal o poder de modo eficaz e garantir minimamente a democracia? Além da divisão de poderes citada acima; as noções de transparência, e, principalmente de accountability, adotadas em reformas recentes, sejam orientadas pela Nova Gestão Pública, sejam orientadas pela governança pública, aparecem como meios para manter dentro de certos limites tal poder do funcionalismo burocrático e se preocupava com o risco do funcionário público assumir uma posição mais vantajosa no processo decisório em relação ao político, que poderia deixá-lo à mercê dos interesses do burocrata. Este questionamento atualizado, leva a críticas feitas ao modelo tradicional burocrático que o consideravam centralizador, insensível as demandas cidadãs, autocentrado e autoritário, feitas por autores da esquerda, ao longo do período dos anos 60 a 90 do século passado. Recentemente propostas de reformas baseadas na noção da nova governança pública se orientam pela ideia de que a direção da sociedade ou o processo de políticas púbicas sejam caracterizadas pelo envolvimento participativo de um amplo grupo de diferentes atores sociais junto com o governo (Pollit e Bouckaert,2011; p. 21). Daí a adoção de práticas participativas em processos decisórios na administração pública, de criação de espaços deliberativos voltados para os direitos e políticas públicas, como os conselhos de políticas públicas e de direitos.
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O que “resulta da consideração daquilo que a burocracia como tal não realiza”? As capacidades de decisão e de organização, conforme suas próprias ideias, são qualidades exigidas, quase sempre no caso concreto, mas muitas vezes também de modo geral, tanto dos ‘funcionários’ quanto dos ‘dirigentes’” (Weber,1999; p. 542). Atualmente, a noção de accountability serve para tentar responder a tal questionamento. No entanto, a adoção de mecanismos de accountability nem sempre implica correções de rumo das políticas adotadas. Mecanismos de controle social, como conselhos citados anteriormente, também servem para aprimorar as iniciativas estatais, mas também não são garantia de que a burocracia venha a corrigir seu rumo em certa política ou iniciativa. Do ponto de vista da abordagem gerencialista, uma possível solução seria a possibilidade de associar desempenho com o pagamento do salário, ou até a demissão de pessoal, flexibilizando assim a estabilidade funcional.
Tais questionamentos fizeram parte de modelos de administração pública que emergiram a partir dos anos 80 do século XX. Diferentes propostas, embora identificassem problemas similares na burocracia, propunham caminhos distintos, em certos aspectos. A partir dos anos 80 se fez presente a Nova Gestão Pública. Tal abordagem, orientada por princípios de mercado, buscava por meio da flexibilização e da privatização e da terceirização, aumentar a eficiência. Esta abordagem intencionava superar problemas relacionados a lentidão processual, corrupção, distanciamento das necessidades da sociedade, centralização decisória e de uma postura autocentrada por parte do funcionalismo. O burocrata aqui é visto como ator com responsabilidades gerenciais e que tem que responder pelos resultados obtidos. Em certos países e setores, eles possuíam mais poder e recursos. Em alguns países tal descentralização não se fazia presente. Mantinha certa discricionariedade, mas sendo cobrados por resultados.
Outro modelo foi o da Nova Governança Pública, orientada pela democratização, por meio da participação cidadã, da deliberação pública e da adoção de redes como arranjos híbridos, compostos por atores estatais, da sociedade civil e do mercado, em assuntos públicos. A intenção aqui e, além da democratização, garantir legitimidade da gestão e fortalecer a cidadania. O burocrata é também objeto de cobrança por resultados, mas também ele assume um papel político de interlocutor com o público beneficiário dos serviços prestados ou das políticas adotadas. O controle horizontal é preferido em relação ao controle vertical (Pollit e Bouckaert, 2011, p. 22).
Por outro lado, o modelo weberiano sofre modernizações, com aumento profissionalização, aumentar a eficiência e a responsividade em relação aos cidadãos, o que pode ser denominado de Novo Modelo Weberiano. A adoção de ferramentas/métodos da administração privada tem um papel secundário. O Estado é o principal ator, com suas próprias regras, métodos e cultura. (Pollit e Bouckaert, 2011, p. 22).
Embora possam ser identificados ferramentas gerenciais oriundas de uma determinada abordagem, algumas dessas ferramentas podem ser adotadas em outras abordagens. Um exemplo seria a terceirização, que pode ser adotada em qualquer uma dessas abordagens ou modelos citados anteriormente (Pollit e Bouckaert, 2011, p. 22-25).
Mais especificamente, no caso brasileiro, a tentativa de implantação do modelo burocrático nos anos 30, ou seja, de universalismo de procedimentos, conviveu com práticas corporativistas, clientelistas e de insulamento burocrático. Mais recentemente nos anos 90, a tentativa da adoção do modelo gerencialista, aquele orientado pela Nova Gestão Pública, segundo Lessa (2003), fragilizou a capacidade estratégica de Estado, por meio das privatizações, e não necessariamente levou ao crescimento econômico, que os defensores da reforma gerencialista propagavam. Foram adotadas certas ferramentas gerenciais, mas sem grande mudança nas gramáticas, ou seja, nas relações entre sociedade e instituições políticas, características da cultura política brasileira. A reforma, a partir dos meados de 1990, replicou o insulamento burocrático já adotado por Vargas e Kubistcheck, por meio das agências reguladoras, a despeito do discurso sobre o modelo gerencialista como modernizador da administração pública, suscetível a transparência e a accountability.
Paralelamente, a partir da Constituição de 88, elementos do modelo de governança pública foram também adotados. Cabe destacar a criação de conselhos de políticas públicas, de direitos e temáticos, com caráter deliberativo e compostos por representantes da sociedade civil, do Estado e do mercado. Tal iniciativa visa democratizar a administração pública, com o intuito de aprimorar não só as políticas públicas com também de fortalecer a cidadania por meio da participação e da deliberação. Por outro lado, tais iniciativas se deram concomitantemente com a reprodução de padrões de relações entre a sociedade e as instituições políticas comuns no cenário nacional, citadas anteriormente. Para concluir, o caso brasileiro, segundo Nunes (2003) e Lessa (2003), é marcado pelo sincretismo nas relações entre sociedade e instituições políticas, onde se pode identificar a existência de práticas clientelistas, universalistas, corporativistas e de insulamento, mais ou menos combinadas, a depender do governo, dos setores, dos contextos e dos problemas envolvidos.
Os questionamentos de Weber sobre a burocracia também se fizeram presentes de um modo ou de outro em modelos teóricos que tem a administração pública e o burocrata como objetos. Eles serão tratados a seguir, à medida que eles se fazem presentes nas diferentes abordagens da administração pública.
Teorias sobre burocracia e o burocrata público
Para dar conta, em termos contemporâneos da questão do burocrata, apresentamos a seguir teorias relevantes para essa discussão. A primeira teoria é o da Escolha Pública. Esta parte se apoia na perspectiva de Monteiro (2007). Segundo ele, a teoria da Escolha Pública consiste na adoção do método econômico na análise do setor público. Ela se baseia em 2 princípios. O primeiro considera que os atores do setor público se comportam com o intuito de maximizar seus próprios interesses (desejos, necessidades, preferências e demandas). O segundo considera que todas as entidades sociais são constituídas de conjuntos de atores individuais. Nesse contexto, os burocratas atuam no cotidiano organizacional, alocados nos diferentes níveis organizacionais e unidades de decisão (Monteiro, 2007; p. 77).
Alguns deles mantém relação com representantes do corpo legislativo. Outros servem de apoio aos outros colegas de instituição, enquanto outros lidam diretamente com os políticos/cargos de confiança do governo. Segundo Monteiro (2007; p. 35) são os legisladores e o executivo que tratam, em diferentes condições, do monitoramento dos burocratas. Não existe controle direto entre burocratas e eleitores.
A racionalidade do burocrata é determinada pela maximização de poder discricionário que ele possa ter no processo de alocação de recursos orçamentários e em decisões de regulação. Por outro lado, os interesses dos burocratas não são necessariamente ruins para a sociedade. Mas também a burocracia pública pode decidir de modo equivocado, por incompetência ou não (Monteiro, 2007; p. 77-78). Nesta perspectiva de Monteiro (2007) o burocrata pode ter diferentes sentidos na sua atuação e pode fazer uso de diferentes recursos a depender das suas relações com outros atores. Como este autor afirma, a relação com grupos de interesses privados, podem aprimorar o processo decisório, tanto em termos técnicos quanto no que concerne a questão da legitimidade (Monteiro,2007; p.78).
Por outro lado, Peters (2003, p. 72) ressalta a função das instituições na moldagem da atuação do burocrata ou do político, à medida que elas canalizam e constrangem as condutas e os interesses desses atores. Desse modo, as instituições seriam uma garantia de que a atuação do burocrata seria em direção a do bem público.
A outra teoria é a teoria da agência, pela qual se adota o modelo principal-agente. Este modelo permite a análise de interações entre instituições e entre indivíduos e instituições. Ele pode ser utilizado para compreender tanto as relações intraorganizacionais quanto aquelas entre as instituições públicas. Ele se preocupa em estabelecer uma estrutura que permite ao principal (que pode ser o congresso, o político ou o cidadão a depender do caso) pode ter certeza de que o agente (que pode ser o político e/ou o burocrata) cumpra com as demandas de acordo com critérios estabelecidos pelo principal (Peters, 2003, p. 81-82).
Para Lane (2000, p. 132) a questão-chave no modelo principal-agente é como elaborar um contrato pelo qual o principal motiva o agente a trabalhar e, ao mesmo tempo, permita a ele pagar uma compensação que corresponda ao trabalho realizado pelo agente. Este modelo considera que os atores envolvidos atuam apenas por interesses individuais. Eles podem ser egoísticos, altruísticos, pessoais, sociais. Não se tem interesses públicos como elemento mobilizador do setor público (Lane, 1993, p. 114).
Como no modelo anterior, o modelo reflete certa desconfiança sobre o burocrata público. Desconsidera o principal e não questiona até que ponto o principal não deveria também ser objeto de questionamento. Desse modo, limita a visão sobre as possibilidades de atuação por parte do funcionalismo público, além de não considerar adequadamente a relação do burocrata com atores da sociedade e não levar em conta a complexidade do contexto na qual esse ator trabalha.
Uma outra abordagem é a teoria do stakeholder. Esta abordagem coloca a organização pública/o governo no centro de um conjunto de relações existentes entre ela e indivíduos, grupos, outras organizações, os denominados stakeholders (Steiner e Steiner, 1997, p. 12). O stakeholder é qualquer pessoa, grupo ou organização que pode apresentar uma demanda na assistência, nos recursos, ou produto de uma organização, ou é afetada por aquele produto (Bryson, 2003, p. 3, 1995, p. 27) lista exemplos de stakeholders de uma organização pública ou de um governo: cidadãos, aqueles que pagam impostos, os usuários de serviços, o corpo do governo, empregados sindicatos, grupos de interesse, partidos políticos, a comunidade financeira empresários, e outros governos.
A análise do stakeholder serve para imergir no contexto político no qual uma determinada organização está inserida. A compreensão dos aspectos políticos do contexto no qual tal organização trabalha é importante para verificar em que extensão as questões estratégicas e a sua implementação estão destoantes das demandas dos seus stakeholders. Neste sentido, o burocrata possui um papel político relevante, principalmente em situações em que existem desigualdades sociais, econômicas, de gênero e cor, e onde a organização pública depende de outras organizações para garantir a eficiência, a eficácia e a efetividade da sua atuação.
Nesse sentido, um primeiro passo nesta abordagem é conhecer os diferentes stakeholders da sua organização. Seja do ponto de vista da análise, seja do ponto de vista do burocrata, a seleção ou a identificação do stakeholder, tem que se orientar por critérios de democracia e justiça social. Assim, ela tem que ser inclusiva, na qual os interesses dos stakeholders sejam considerados. Como afirma Bryson (2003, p. 4) a escolha dos stakeholders afeta a gestão de uma iniciativa pública, à medida em que influencia sobre a decisão de quem e o que são relevantes para aquela iniciativa. Esta abordagem é relevante para o planejamento estratégico de uma organização, com efeitos nos níveis tático e operacional. Ela demanda, também, envolvimento de stakeholders já que isto pode clarificar as perspectivas dos diferentes stakeholders sobre a organização, identificar pontos que possam ser relevantes em termos estratégicos, iniciar processos de identificação de coalizões ou de oposição (Bryson, 2003), além de reconhecer as diferenças entre os atores envolvidos em termos de recursos, competências, valores e interesses. Em geral, não se pretende atender a todos os stakeholders, mas aqueles considerados mais relevantes, considerando o objetivo da iniciativa pública. Isto busca auxiliar na obtenção de um resultado minimamente satisfatório. Também a atenção ao stakeholder leva a avaliar e a fortalecer a viabilidade política da iniciativa. Se percebe, que a escolha de qual stakeholder é relevante é uma ação basicamente política (Bryson, 2003).
Diante do que foi exposto até aqui, pode ser dito que certas abordagens adotam uma postura mais de desconfiança em relação ao burocrata, como as abordagens da escolha pública e a do principal-agente; e a do stakeholder, adota uma perspectiva onde o burocrata está no centro de relações, já que ele pertence a uma organização pública, mas como um stakeholder a mais. Nesta perspectiva, ele pode também ter uma atuação no sentido do bem comum, como um ator de diálogo com a sociedade civil e que relaciona suas demandas com as propostas oriundas dos políticos dirigentes. Em suma, a abordagem do stakeholder pode ser aplicada para se analisar arranjos de governança pública (Gomes et al., 2021; Maciel e Pinto, 2022), em outras palavras, ela pode ser utilizada para se analisar o papel do burocrata público em um contexto de crise da democracia, que vai ser tratado na próxima seção.
O burocrata no contexto político-administrativo
Nesta seção, inicialmente trataremos do entendimento sobre política neste trabalho, para poder fazer a relação com o burocrata público. Ao falar de política aqui se faz uso da reflexão de Singer et al. (2021) que sugere considerar a política como tendo dois sentidos divergentes. O primeiro sentido é aquele que entende a política como a prática coletiva da liberdade, seguindo o entendimento de (Arendt, 2019, apud Singer et al., 2021) sobre a experiência da polis grega. Nesta perspectivam segundo Singer et al. (2021), a política apenas ocorre em espaços públicos onde os participantes “livres e iguais se comprometem com um processo deliberativo” (Singer et al., 2021, p. 13). Por sua vez, o processo deliberativo é entendido aqui como aquele onde um ator pode ter a sua visão inicial sobre uma questão, ser alterada devido a argumentos apresentados por outros nesse mesmo processo. A palavra constitui o único meio de convencimento e é necessário que se tenha igualdade entre os envolvidos para que todos tenham a liberdade para se expressar.
Nesta perspectiva, o burocrata se torna um ator que, de um lado, representa o governo e a administração pública, mas do outro, dialoga com os representantes da sociedade, em processos deliberativos, que podem ser parte de um processo de iniciativa pública, ou fazer parte de uma instância participativa pública. Ele se torna um negociador, além de poder apreender o que os cidadãos têm para oferecer em termos de perspectivas, expectativas em relação a atuação da organização pública que ele representa.
No Brasil, principalmente após a Constituição de 88, se implantou ferramentas relacionadas a nova governança pública, relacionadas a participação e deliberação cidadãs. Os conselhos setoriais de políticas públicas adotadas nos três níveis de governo, espaços de envolvimentos de cidadãos em escolas públicas, nas redes de saúde pública e os casos de orçamento participativo, a despeito de problemas de funcionamento, indicaram caminhos de diálogo entre a administração pública e a sociedade. Neste contexto, o burocrata público se viu desafiado muitas vezes a romper com uma perspectiva cultural no qual o cidadão era o objeto de sua ação, para passar a considerá-lo como um ator com quem dialogar com o intuito de aprimorar a sua própria atuação para resolver demandas daquele cidadão.
O segundo sentido da política é denominado de dirigista, ou seja, aquele que a considera como a luta pela direção do Estado moderno, segundo Singer et al. (2021, p. 14), fazendo uso da reflexão de Max Weber. O Estado, dentro de certo território, detém o monopólio do uso legítimo da violência. A política seria caracterizada por determinados atores políticos, forjando alianças e atraindo voluntários, para se tornarem aqueles que conduziriam o Estado. Observa-se que a política não se resume ao uso legítimo da violência, mas engloba também a persuasão. Aqui, o burocrata pode ser entendido como um ator que deve ser objeto de desconfiança e de controle, já que se poderia ter certo poder nas suas mãos, em detrimento dos políticos e dos cidadãos. Por outro lado, ele é percebido como aquele agente que segue as regras e as decisões emanadas pelo político, responsável primeiro pelas iniciativas do governo.
Nesta ótica sobre a política deve-se observar que a separação dos funcionários da propriedade dos meios/recursos administrativos leva a centralização desses últimos nas mãos de atores burocráticos e ou políticos que ocupem o nível superior da hierarquia organizacional. A cúpula organizacional dispõe de poder para administrar os subordinados de acordo com determinada racionalidade corporificado no plano institucional. A expectativa é de que a organização funcione de modo automático, a despeito das limitações da racionalidade adotada. Tal capacidade seria uma vantagem em comparação a outros modelos de administração (Singer et al., 2021, pp. 108-109)
A combinação de três aspectos da burocracia pode explicar o processo de empoderamento do burocrata (Singer et al., 2021, pp. 108-111). Na medida em que o burocrata não detém a propriedade dos recursos administrativos, eles estão aptos a se dedicar a um trabalho referente a um cargo específico, cuja função é complementada pelo esforço específico de um outro cargo. Cada função específica implica determinado conhecimento especializado, que requer formação educacional e/ou treinamento, o que significa que o burocrata detém conhecimento técnico, tanto sobre a sua função quanto sobre a organização na qual trabalha, que o político e muito menos o cidadão teriam.
Esses aspectos são complementados pela dedicação exclusiva do burocrata à instituição, que garante a ele um salário e uma expectativa de ascensão organizacional, o que o torna dependente da organização pública, de um lado. Por outro lado, a organização fica dependente do burocrata, já que graças ao conhecimento por ele acumulado devido a sua formação e a sua experiência na função/cargo, ele se torna peça indispensável ao funcionamento eficiente da organização (Singer et al., 2021, p. 108-111). Daí a postura tecnocrática por parte do burocrata em relação ao cidadão e em relação ao político, esta última marcada por uma tensão constante, já que o político tenta implementar suas ideias, mas nem sempre consegue, diante do conhecimento e de práticas que a burocracia pode adotar.
Mas por outro lado, neste sentido dirigista de política, a burocratização pode ter uma atuação cega, seguindo à risca o princípio da impessoalidade. Assim, ela fornece meios sem perguntar pelos fins. Isto abre brechas para políticos tanto elaborarem e implementarem políticas contrárias a noção de liberdade e de igualdade. Assim, a burocracia foi utilizada por governos que se tornaram regimes totalitários na primeira metade do século XX (Singer et al., 2021, p. 259).
Mas também, os políticos adotam políticas a favor da igualdade e da liberdade. Ao longo dos anos de 1945 a 1975, houve a criação do Estado de bem-estar social, que significou o aprofundamento tanto dos direitos sociais quanto da democracia, além disso a democracia se espalhou por vários países ao redor do mundo, processo onde a administração pública burocrática teve papel primordial, já que ela serviu de suporte tanto para políticas sociais, voltadas para o bem-estar, quanto para políticas econômicas de caráter keynesianas, onde se fazia presente o investimento estatal.
No entanto, nos anos 80, com a denominada crise do Estado, vários países passaram a adotar reformas visando atenuar os gastos fiscais em nome de uma atuação mais flexível do setor público e de uma atuação por parte do mercado e do terceiro setor em áreas antes monopólio estatal. Isto implicou em mudanças na atuação estatal na economia, na prestação de serviços sociais e no modus operandi da administrativa pública (Singer et al., 2021, p. 251).
Com a crise de 2008 e após 2016, a extrema direita avançou eleitoralmente em países de capitalismo avançado. Posteriormente tal expansão se deu em países tanto do continente americano quanto no asiático, o Brasil e a Índia são alguns desses exemplos (Singer et al., 2021, pp. 251-252). Em termos políticos, se percebe que a atuação de grupos políticos foi no sentido dirigista e de modo autoritário. Neste contexto, a seção final volta o olhar para o burocrata público, para esboçar um retrato desta nova situação de trabalho.
Discussão
Para refletir sobre a situação do burocrata público no contexto da crise da democracia, se faz uso aqui, de modo adaptado, de indicadores para analisar se governos, eleitos democraticamente, adotam iniciativas autoritárias, estabelecidos por Levitsky e Siblatt (2018). A partir deles, discorre-se sobre a atuação do burocrata nesse contexto político.
O primeiro se refere a rejeição regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas), por parte dos governos. Aqui cabe ressaltar que um tipo de ação governamental pode ser a desconsideração ou mudança legal do envolvimento da sociedade civil em processos de políticas. Um exemplo é a fragilização de espaços deliberativos, como os conselhos setoriais de políticas públicas, o orçamento participativo, conferências temáticas e outras. Nesta situação, o burocrata perde interlocução com representantes da sociedade civil e, em consequência, pode ter perda na qualidade da visão sobre a realidade onde ele atura, fragilizar sua condição de aprendizagem sobre a realidade onde deve atuar/objeto de manipulação governamental; riscos de falta de transparência e accountability de tal modo que fragiliza a capacidade da sociedade civil de fazer valer os seus direitos e coloca o burocrata como um agente dominado pelo político.
O segundo indicador se refere a negação da legitimidade dos oponentes políticos. Isto pode levar ao risco de falta de debates sobre projetos importantes para a sociedade ou a processos decisórios voltados apenas para interesses de grupos aliados aos atores políticos no poder, em detrimento poder legislativo e de demandas legítimas societais que reflitam necessidades de áreas onde políticos da oposição são dominantes. Isto pode levar o burocrata se tornar um executor de iniciativas que aprofundem desigualdades, a despeito de certo arbítrio que os burocratas de nível de rua, aqueles que lidam diretamente com o público, possam vir a ter.
O terceiro indicador trata da tolerância ou encorajamento à violência. A situação decorrente da omissão do Estado em relação ao burocrata pode ter diferentes formas. Atores da sociedade podem se sentir incentivados a adotar comportamentos violentos na tentativa de resolução de problemas relacionados com a administração pública, colocando o burocrata em contexto de risco. Por outro lado, corre-se o risco de aumento de posturas violentas por setores de segurança pública sobre grupos que habitam áreas mais pobres ou de repressão as vozes de oposição ou crítica a políticas governamentais.
Deve ser ressaltada, também, mudança nas condições de trabalho, onde uma gestão de caráter repressiva em relação ao funcionalismo busca fazer com que o burocrata, mesmo cumprindo as regras, não interfira nos interesses seja do grupo no poder, seja de grupos aliados ao governo, seja em relação a violência cometida pelo próprio Estado, ou se necessário atue de modo flexível em relação ao cumprimento das regras. Em situações mais extremas, isto pode adquirir aspectos de assédio sobre funcionários, como ameaças e até perda de cargo.
O último indicador se refere a propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia. Dentre as restrições a liberdades civis, cabe ressaltar o desrespeito ao direito a informação sobre a Administração Pública que a sociedade e a mídia podem e devem usufruir. Tal propensão ganha corpo, no olhar que nos interessa, em falta de transparência e de accountability. Essas iniciativas podem fragilizar a capacidade da sociedade civil de fazer valer os seus direitos e colocar em riscos de assédio a funcionários públicos que possuem posições políticas distintas das do grupo no poder; desconsideração de organizações da sociedade civil em processos de elaboração e implementação de políticas públicas. Isto pode afetar a capacidade do funcionalismo de ter uma atuação minimamente eficaz, já que sua atuação depende muitas da atuação de atores da sociedade civil, que por sua vez necessitam de liberdades civis para verbalizar e defender suas demandas em relação a administração pública ao governo de plantão.
Conclusão
Para finalizar o texto, se reconhece que o contexto no qual o burocrata se encontra pode ser considerado bastante constrangedor, seja por motivos decorrentes de políticas fiscais, seja por motivos políticos decorrentes de posturas autoritárias adotadas por executivos eleitos. Em termos históricos, diversos países, inclusive o Brasil, experimentaram diferentes abordagens e diferentes ferramentas oriundas dessas diferentes abordagens de modo simultâneo. No caso brasileiro, o modelo burocrático se faz dominante, embora ferramentas do modelo gerencialista e do modelo da nova governança pública também sejam utilizados. No entanto, tanto no Brasil quanto em outros países onde governos com posturas autoritárias foram eleitos, as ferramentas e a legislação de caráter democrático se viram prejudicadas, principalmente por mudanças legais. Diante desse cenário, as opções por alternativas de ação são restringidas, já que uma das características da burocracia pública é que ela é regida por leis, leis estas modificadas de acordo com orientações centralizadoras por parte de governo. O que significa dizer, que muitas vezes, leis só poderão modificadas em sentidos opostos por outros governos eleitos, mas de orientação democrática. Paralelo a isto, mobilizações da sociedade podem reverter iniciativas autoritárias, a depender de como elas afetam o Legislativo e em consequência o Executivo e o poder político que elas possuem. O espaço de manobra para o burocrata público, movido pela concepção política como prática coletiva da liberdade, se vê obrigado a busca alianças fora da burocracia, além de mapear atores dentro da organização pública que possam estabelecer relações que protejam a discricionariedade que resta no seu espaço de atuação. Isto vale principalmente para aqueles que atuam ao nível da rua. Desse modo, o texto termina com questionamentos que possam servir de sugestão tanto para a prática quanto para a investigação sobre o burocrata público:
A primeira se pergunta: Em que extensão a fragilização de órgãos públicos, seja por meios de mudança legal, seja por restrição orçamentária, seja por aparelhamento, prejudica a atuação do funcionalismo em direção as questões institucionais sob a sua responsabilidade?
A segunda é a seguinte: Em que extensão uma articulação entre funcionalismo e cidadãos pode servir de contrapeso a atuação de orientação autoritária por parte do governo?
A primeira questão tem um olhar para dentro da organização, preocupada sobre como que a organização pode se manter e cumprir com o seu papel, diante de iniciativas restritivas por parte do grupo no poder. Tal resposta passa pela atuação do burocrata que trabalha e conhece a organização, e pela articulação que o corpo burocrata pode realizar diante de processos de fragilização por parte do grupo político no poder.
A segunda, volta o olhar para a relação entre o burocrata e a sociedade, razão primeira da sua atuação, preocupada com a possibilidade de aproximar dois atores, que muitas vezes não se encontram e nem se entendem, que outras vezes estabelecem relações frutíferas, para uma possível relação dialógica e política, que permita momentos de resistência e de garantia dos direitos.
O objetivo deste ensaio é refletir sobre o papel político-administrativo do Burocrata da Administração Pública no contexto da crise da democracia. O burocrata público, aqui sinônimo de funcionário público, não é entendido como um ator neutro, puramente profissional, mas sim como figura da Administração, que é influenciada pela Política, e vice-versa. Sua atuação pode ser auto-interessada, voltada para o bem público, ou seguir estritamente a ordem política de acordo com o marco legal, a despeito dos resultados de tal ordem. Tal perspectiva, uma vez aprofundada, será contraposta ao contexto da crise da democracia. Para refletir sobre a situação do burocrata público no contexto da crise da democracia, se faz uso aqui, de modo adaptado, de indicadores para analisar se governos, eleitos democraticamente, adotam iniciativas autoritárias, estabelecidos por Levitsky e Siblatt (2018). A partir deles, discorre-se sobre a atuação do burocrata nesse contexto político. Como conclusão, se pode perceber que ele pode contribuir para resistência contra posturas que buscam minar procedimentos democráticos na Administração Pública. Ao mesmo tempo, se percebe que tal atuação tem que ter respaldo de outros atores do próprio Estado para contrapor iniciativas autoritárias por parte do Executivo.
The objective of this essay is to reflect on the political-administrative role of the Public Administration Bureaucrat in the context of the crisis of democracy. The public bureaucrat, here synonymous with public servant, is not understood as a neutral, purely professional actor, but rather as a figure in Administration, who is influenced by Politics, and vice-versa. Their actions may be self-interested, aimed at the public good, or strictly follow the political order in accordance with the legal framework, regardless of the results of such order. This perspective, once deepened, will be constrated with the context of the crisis of democracy. To reflect on the situation of public bureaucrats in the context of the crisis of democracy, we use, in an adapted way, indicator to analyze whether democratically elected governments adopt authoritarian initiatives, established by Levitsky and Siblatt (2018). From them, we discuss the role of the bureaucrat in this political context. As a conclusion, it can be seen that they can contribute to resistance against positions that seek to undermine democratic procedures in Public Administration. At the same time, it is clear that such action must have the support of other actors within the State itself to counteract authoritarian initiatives on the part of the Executive.
El objetivo de este ensayo es reflexionar sobre el rol político-administrativo del burócrata de la Administración Pública en el contexto de la crisis democrática. El burócrata público, sinónimo de funcionario, no se entiende como un actor neutral y puramente profesional, sino como una figura dentro de la Administración, influenciada por la política, y viceversa. Sus acciones pueden ser egoístas, centradas en el bien común, o estrictamente apegadas al orden político según el marco legal, independientemente de sus resultados. Esta perspectiva, una vez explorada en profundidad, se contrastará con el contexto de la crisis democrática. Para reflexionar sobre la situación del burócrata público en dicho contexto, utilizamos, de forma adaptada, los indicadores establecidos por Levitsky y Siblatt (2018) para analizar si los gobiernos democráticamente elegidos adoptan iniciativas autoritarias. Con base en estos indicadores, analizamos el rol del burócrata en este contexto político. En conclusión, podemos observar que pueden contribuir a la resistencia contra posturas que buscan socavar los procedimientos democráticos en la Administración Pública. Al mismo tiempo, es claro que dicha acción debe contar con el apoyo de otros actores dentro del propio Estado para contrarrestar las iniciativas autoritarias del Ejecutivo.
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