Administración & Desarrollo
2500-5227
Escuela Superior de Administración Pública
https://doi.org/10.22431/25005227.1221

Recibido: 20 de noviembre de 2024; Aceptado: 15 de enero de 2025

A construção participativa de uma política nacional de justiça a partir do modelo de conferências públicas no Brasil

La construcción participativa de una política nacional de justicia basada en el modelo de conferencia pública en Brasil

The participatory construction of a national justice policy through the model of public conferences in Brazil

C. Barbosa, 1 J. Tavares Neto, 2 M. Barbosa Xavier, 3

Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Prado Velho, Curitiba - Brazil claudia.barbosa@pucpr.br Pontifícia Universidade Católica do Paraná Pontifícia Universidade Católica do Paraná Prado Velho Curitiba Brazil
Universidade Federal de Goiás Universidade Católica de Goiás. Samambaia, Goiânia- Brazil josequerino@ufg.br Universidade Federal de Goiás Universidade Federal de Goiás Samambaia Goiânia Brazil
Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brazil mleticiabx@gmail.com Universidade do Estado de Santa Catarina Universidade do Estado de Santa Catarina Florianópolis SC Brazil

Resumo

No presente artigo defende-se a construção participativa de uma Política Nacional de Justiça (PNJ) no Brasil, considerando a multidimensionalidade da justiça como valor, direito, poder e serviço público. Com natureza teórica e reflexiva, a pesquisa utiliza teorias democráticas híbridas e o conceito de interfaces socioestatais para sustentar a hipótese de que o processo de construção de conferências públicas, particularmente da área de saúde, pode inspirar a formulação dessa política. O objetivo é estabelecer bases para uma PNJ que amplie a accountability e fortaleça a governança judicial, promovendo a democratização e a legitimidade do sistema judiciário. Conclui-se que elementos das conferências públicas podem ser aplicados para envolver não apenas o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas também os Poderes Executivo e Legislativo e a sociedade civil na formulação de uma PNJ. A proposta visa a construção de um sistema judiciário mais acessível, equitativo e responsivo, em conformidade com os princípios do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave:

política pública, justiça, governança, poder judiciário, política nacional de justiça.

Resumen

En este artículo se defiende la construcción participativa de una política nacional de justicia (PNJ) en Brasil, considerando la multidimensionalidad de la justicia como valor, derecho, poder y servicio público. La investigación, de naturaleza teórica y reflexiva, utiliza teorías democráticas híbridas y el concepto de interfaces socio-estatales para sustentar la hipótesis de que el proceso de construcción de conferencias públicas, particularmente en el sector de la salud, puede inspirar la formulación de esta política. El objetivo es establecer las bases para una PNJ que amplíe la accountability y fortalezca la gobernanza judicial, promoviendo así la democratización y la legitimidad del sistema judicial. La conclusión identifica elementos de las conferencias públicas que podrían aplicarse para involucrar no solo al Consejo Nacional de Justicia, sino también a los poderes Ejecutivo y Legislativo, junto con la sociedad civil, en la formulación de una PNJ. La propuesta busca construir un sistema judicial más accesible, equitativo y receptivo, alineado con los principios del Estado democrático de derecho.

Palabras clave:

política pública, justicia, gobernanza, poder judicial, política nacional de justicia.

Abstract

This study argues for the participatory construction of a National Justice Policy (PNJ) in Brazil, considering the multidimension nature of justice as value, right, power, and public service. The research, theoretical and reflective in nature, employs hybrid democratic theories and the concept of state-society interfaces to support the hypothesis that the process of building conferences, particularly in the healthcare sector, can inspire the formulation of this policy. The objective is to establish the foundations for a PNJ that enhances accountability and strengthens judicial governance, promoting the democratization and legitimacy of the judicial system. The conclusion identifies elements of public conferences that could be applied to involve not only the National Council of Justice but also the Executive and Legislative branches, along with civil society, in the formulation of a PNJ. The proposal seeks to build a more accessible, equitable, and responsive judicial system aligned with the principles of the Democratic Rule of Law.

Keywords:

public policy, justice, governance, judiciary, national justice policy.

Introdução

O primeiro quartil deste século tem sido marcado por uma significativa expansão do poder das cortes nos países democráticos ocidentais. Esse fenômeno contrasta com a persistente baixa accountability do sistema de justiça, criando um paradoxo entre a ampliação do protagonismo judicial e a limitada transparência e responsabilidade perante a sociedade. Uma consequência direta desse empoderamento é o deslocamento do processo de legitimação da justiça: enquanto no passado esperava-se que ela atuasse como um árbitro independente e imparcial em conflitos, atualmente, a legitimação é buscada na efetividade do acesso à justiça e na garantia de um amplo e complexo rol de direitos. Essa transformação coloca o foco na qualidade e eficácia das respostas judiciais oferecidas aos jurisdicionados, mas também aumenta o risco de descrédito na justiça, especialmente diante de expectativas não atendidas.

Por outro lado, a arquitetura institucional e os processos de tomada de decisão baseados exclusivamente em procedimentos democráticos representativos têm enfrentado crescentes desafios, aprofundando a crise do modelo democrático ocidental. Essa crise levou à busca por formas mais participativas de governança, nas quais a inclusão de cidadãos nos processos decisórios é vista como um meio de assegurar a legitimidade da atuação estatal. Nesse contexto, iniciativas como a Open Government Partnership (2019) emergem como uma resposta parcial a essa demanda. Essa parceria global, da qual participam quase 100 países, incluindo o Brasil, visa melhorar os serviços públicos por meio do fortalecimento das relações entre o Estado e os cidadãos, um vínculo que também precisa ser ampliado no Judiciário.

A OGP fundamenta-se em princípios como transparência, participação cidadã, colaboração entre atores públicos, privados e sociais, e accountability em suas três dimensões: transparência, responsividade e responsabilidade. Além disso, a parceria aposta no uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC) para promover maior eficiência e engajamento (Cruz-Rubio, 2020).

O setor judicial, por muito tempo, esteve à margem dos desafios enfrentados pela Administração Pública. Em algumas abordagens, o Judiciário foi compreendido como um poder apartado, regido por princípios próprios e, em certa medida, pela sua própria natureza incontrolável, em um processo de retroalimentação que acontece dentro do campo jurídico. Contudo, essa visão vem sendo progressivamente contestada por uma doutrina emergente que reconhece a necessidade de exigir maior acountability do sistema de justiça e responsabilizar o Judiciário não apenas por suas decisões, mas também pela qualidade do serviço entregue ao cidadão e pela governança de suas instituições. Este processo depende de impulsos externos ao sistema de justiça, com a participação de atores de fora do campo jurídico, como manifestação do que Bourdieu (1983) identificou com a heterodoxia no campo jurídico, que seria capaz de criar fissuras que ajudariam a romper o habitus no interior do campo, de forma a promover a democratização da justiça. No campo jurídico, a ortodoxia de Bourdieu manifesta-se nas práticas dominantes que mantém o status quo e a autoridade do direito, enquanto a heterodoxia decorre justamente de posições contestatórias que desafiam esta prática, por isso a participação da sociedade e atores externos é essencial no processo de democratização da justiça (Barbosa e Tavares Neto, 2024).

Na Constituição brasileira o signo justiça, e seus derivados (justo, judiciário) são utilizados com diferentes significados e contextos cuja análise resultou na identificação de quatro dimensões: uma dimensão de valor ou virtude, em que justiça e a solidariedade constituem-se em objetivos da sociedade brasileira; uma dimensão de direito, consagrada no amplo acesso à justiça e à ordem jurídica justa; uma dimensão de poder, materializada no Poder Judiciário; uma dimensão de serviço, contemplada na obrigação da prestação jurisdicional célere e eficaz que se impõe ao Judiciário.

Cada uma das dimensões da justiça requer um tipo específico de intervenção para que se possa promover a accountability judicial e assegurar maior efetividade à prestação jurisdicional, e essas intervenções devem integrar uma política pública de justiça, até o momento inexistente.

No estudo analítico proposto defende-se a necessidade de a justiça ser objeto de uma política pública formulada com ampla participação dos setores público, privado e social. A hipótese é de que o modelo de conferências públicas, como uma espécie de interface socioestatal, pode inspirar os debates necessários para a construção desta PNJ que se defende ser necessária para que a justiça possa recuperar a sua legitimidade.

A multidimensionalidade da justiça na Constituição brasileira

A linguagem jurídica enfrenta o desafio de ser ao mesmo tempo uma linguagem ordinária, compreensível a todos os membros de uma comunidade, e técnica, no sentido de oferecer precisão ao que deseja comunicar dentro de uma comunidade de juristas. Diferente da linguagem formal, própria da matemática, que é descrita por símbolos que expressam um mesmo sentido para todos os intérpretes, e da linguagem natural, que utiliza signos vagos e ambíguos, cujo atribuição de sentido varia, em maior ou menor grau, conforme os usuários (emissor e receptor), o contexto, o campo do saber e o uso, a linguagem jurídica utiliza signos da linguagem ordinária, mas busca lhes dar uma precisão maior, reduzindo desta forma a incerteza dos signos (Warat, 1984).

Justiça é um conceito abstrato bastante estudado, por exemplo, na filosofia, na política, na economia e no direito. Na linguagem jurídica o signo justiça e outros pertencentes à mesma família e derivados deste substantivo, como justo(a), judicial e judiciário têm diferentes significados e revelam quatro dimensões da justiça cuja diferenciação é útil para que se possa compreender o seu alcance, limites e significados, de forma a contribuir para a solução do que genericamente se pode identificar como a crise da justiça.

A igualdade de todos perante a lei, o reconhecimento e defesa de direitos individuais, a proteção da propriedade privada e o exercício limitado do poder, traços típicos do liberalismo dos finais do século XVIII, ainda hoje marcantes, dependem do direito de acesso à justiça, “o mais básico dos direitos humanos” (Cappelletti e Garth, 2015), cuja efetividade é um desafio crescente nas sociedades contemporâneas, como expressa a Organização das Nações Unidas (2024), em torno do ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes.

A Constituição brasileira faz menção à justiça ou seus derivativos (judiciário, justo, etc.) em diversas oportunidades, distintos contextos e significados específicos, que expressam diferentes dimensões: valor ou virtude; direito; poder e serviço público (Barbosa e Tavares Neto, 2024).

Na primeira dimensão expressa o valor ou virtude de uma sociedade plural e fraterna, conforme exposto no preâmbulo da Constituição brasileira, que reconhece a “justiça como um valor supremo (...)” (Brasil, 1988), cujo objetivo é, nos temos do artigo 3o, I “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (Brasil, 1988). Nestes dois exemplos o termo é usado sobretudo com um conceito normativo que expressa um conjunto de valores positivamente apreciados e transpostos em Constituições típicas do welfare state, cujo foco é o reconhecimento e a garantia de direitos e a igualdade substancial que proclama a necessidade de uma melhor e mais equilibrada proteção e fruição de direitos, sobretudo os direitos sociais.

Embora a força normativa do preâmbulo seja matéria controversa na doutrina, há convergência na percepção de que no preâmbulo reside a exaltação dos valores caros à sociedade brasileira e, ainda que não possua caráter prescritivo, informa aos jurisdicionados e aos legisladores a direção que se deve buscar na elaboração e execução das leis (Fernandes, 2015). Diferente o preâmbulo, o artigo 3o, expressa um princípio constitucional que, por sua natureza, possui um amplo espectro de interpretação e aplicação, mas cuja imperatividade é inquestionável, o que impede ações contrárias a sua determinação.

A segunda dimensão, que resulta do que a doutrina identifica por princípio da inafastabilidade da jurisdição, traduz um direito fundamental expresso no artigo 5o, XXXV da Constituição (Brasil, 1988), o qual determina que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Este amplo acesso visou assegurar não apenas a justiciabilidade das leis, mas também a sua efetividade, decorrendo daí a percepção de que o acesso à justiça pressupõe também, como adverte Watanabe (2019), o acesso à ordem jurídica justa. Sendo o artigo 5o uma norma de direito fundamental, ela tem, segundo a doutrina constitucional tradicional, eficácia e aplicabilidade direta e imediata, o que implica na sua possível invocação pelo jurisdicionado e proteção independente de outras normas, ainda que estas possam, eventualmente, delimitar o alcance desses direitos (Fernandes, 2015).

A terceira dimensão da justiça é que se identifica como poder, a qual realiza-se na atuação do Poder Judiciário, um sistema composto por 91 tribunais, mais de 15.000 unidades judiciárias localizadas em metade dos municípios do país, onde reside aproximadamente 90 % da população brasileira. O orçamento do Poder Judiciário em 2023 foi de 132 bilhões de reais, correspondente a 1,2 % do PIB, 90 % deste valor consumido com o pagamento dos salários dos magistrados, funcionários e auxiliares judiciais que, juntos, somam quase 500.000 pessoas (CNJ, 2024), números que não incluem os relativos ao funcionamento do próprio CNJ, responsável por organizar a gestão e realizar o planejamento estratégico do sistema de justiça, além de efetuar o controle disciplinar dos magistrados e agentes da justiça.

A quarta dimensão aborda a prestação jurisdicional como um serviço público. Ela decorre da especial função do Judiciário de interpretar as leis e dirimir conflitos, de maneira a realizar a prestação jurisdicional (Migliavaca, 2015). Nesta dimensão, a prestação jurisdicional é compreendida como um serviço público (Dakolias, 1997), e a qualidade da jurisdição é um problema da administração da justiça, um campo específico do alargado campo da administração pública (Guimarães et al., 2018). O objeto da administração da justiça é a prestação jurisdicional efetiva que tem na decisão judicial o seu ato mais importante, e o resultado esperado é a resolução pacífica de controvérsias. Tratando-se de uma função essencial ao exercício de quaisquer outros direitos, exige-se que a prestação jurisdicional seja célere e eficaz, categorias que condicionam a entrega do serviço oferecido aos jurisdicionados pelo Judiciário (Dakolias, 1997).

De forma reversa, todas estas dimensões podem ser encontradas na compreensão de que a efetividade do direito de acesso à justiça exige a prestação de um serviço público (a prestação jurisdicional) célere e eficaz, que será assegurado pelo exercício autônomo e independente do Poder Judiciário, o qual atuará de forma a assegurar o direito fundamental de acesso à justiça, de modo a buscar a realização de uma sociedade livre, justa e solidária, para alcançar o valor supremo de uma sociedade justa e fraterna.

O reconhecimento do caráter multidimensional do signo justiça expresso na Constituição brasileira e a sua decomposição nas dimensões de valor, direito fundamental, poder e serviço público, tornam mais visível a sua compreensão em diferentes formas e contextos, e permite aprofundar estudos, buscar saídas e perscrutar resultados para a chamada crise da justiça.

Justiça e políticas públicas

As políticas públicas, em um modelo de Estado que se consagrou no Pós-guerra e expandiu-se a partir da segunda metade do século XX, na Europa e América do Norte, chegando tardiamente ao Brasil, já no contexto da redemocratização, decorrem do dever do Estado de promover o bem-estar social.

O Tribunal de Contas de União (2021), órgão que tem entre suas principais competências o monitoramento e controle de políticas públicas em nível federal, conceitua políticas públicas como “o conjunto de diretrizes e intervenções emanadas do estado, feitas por pessoas físicas ou jurídicas, públicas e/ou privadas, com o objetivo de tratar problemas públicos e que requerem, utilizam ou afetam recursos públicos” (p. 10).

Schmidt (2018) por sua vez, caracteriza as Políticas Públicas como os

resultados de processos políticos que se desenrolam sob o pano de fundo institucional e jurídico para resolver um problema político. Trata-se de um conjunto de ações interrelacionadas e coerentes entre si, coordenadas pelo Estado para enfrentar um problema político. Elas consubstanciam-se em diretrizes e ações levadas a cabo em áreas específicas, geralmente por um ente estatal, combinado ou não com setores da sociedade civil, para atender a demandas específicas da sociedade, daí a necessária aproximação e articulação da política pública com a sociedade (p. 127).

A locução política pública traduz uma espécie do gênero política e, tal qual a justiça, possui mais de um significado para os quais a língua inglesa utiliza diferentes signos. A polity explicita a dimensão institucional da política; a politics relaciona-se ao processo político (articulação entre os partidos, busca de consensos etc.), e a policy ou policies, no plural, traduz justamente a ideia de políticas, no caso, políticas públicas. Estes três sentidos da política, representadas pelo único signo política na língua portuguesa, articulam-se e condicionam-se mutuamente, visto não ser possível experimentalmente isolar as policies do processo político que as gere (Frey, 2000), e esta articulação é especialmente importante na proposta de se pensar na construção de uma política pública de justiça.

A literatura especializada identifica, na formulação de políticas públicas, um conjunto de fases que compõem o chamado ciclo de políticas públicas, sendo elas: definição do problema, inclusão na agenda, formulação, implementação e avaliação de resultados (Frey, 2000). Ao longo dessas etapas, os setores público, privado e social se articulam de maneiras distintas, e essa diferenciação é mais aguda quando se trata de conceber uma PNJ, diante da relação multifacetada entre o sistema de justiça e as políticas públicas.

A primeira e mais comum face está expressa na crescente intervenção do Judiciário em políticas públicas. A ampliação dos direitos reconhecidos pela Constituição e pela legislação impõe a necessidade de políticas públicas mais eficazes. No entanto, a limitação de recursos e a ineficiência recorrente dos Poderes Executivo e Legislativo em dar respostas adequadas — especialmente em áreas como direitos humanos, saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, saneamento básico, previdência e habitação — têm justificado a atuação crescente do Poder Judiciário, por meio do que se busca garantir a efetivação de direitos e promover uma distribuição mais equitativa de bens e recursos públicos.

Em uma segunda perspectiva a prestação jurisdicional é, ela mesma, tida como um serviço público, exigível do Poder Judiciário, conforme disposto no artigo 5o, XXXX da Constituição, que determina: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios e garantias à celeridade de sua tramitação” (Brasil, 1988). Esta determinação encontra expressão clara na obrigação de entregar aos cidadãos uma prestação jurisdicional eficaz, com que o campo de gestão e das políticas enfrentam o desafio de exigir do Judiciário que assegure à sociedade um serviço essencial, sem o qual qualquer outro direito, por mais fundamental que seja, encontra-se ameaçado (Malena et al., 2004; Barbosa, 2021).

Um terceiro olhe entre justiça e políticas mira no estudo e análise da estrutura, funcionamento e a atuação do próprio Poder Judiciário em seu papel de um poder de estado que tem o dever de entregar ao cidadão a prestação jurisdicional efetiva para todos.

Estas diferentes perspectivas da relação entre justiça e políticas públicas expressam as distintas dimensões da justiça - valor, direito, poder e serviço público, acima identificadas. Todas são importantes e devem ser consideradas quando se busca contribuir para a formulação de uma política pública de justiça, mas elas são tocadas de forma diferente neste processo de construção. A perspectiva da justiça como virtude deveria ser o alvo de toda política pública, na medida em que a construção de uma sociedade justa (equitativa) é um dos objetivos da república Federativa do Brasil. As dimensões da justiça como um direito e como um poder se perfazem no acesso à ordem jurídica justa e na garantia de que a lesão ou ameaça a direitos será eficazmente combatida pelo Poder Judiciário. Já a dimensão de serviço público resulta na obrigação de se entregar ao jurisdicionado uma efetiva prestação jurisdicional que deve ser célere e eficaz.

No constitucionalismo contemporâneo a legitimidade do Judiciário tem relação direta com a efetividade da jurisdição entregue ao cidadão, mas enquanto aquela depende de um equilíbrio ótimo entre independência e accountability judiciais, esta foca na eficiência do serviço prestado. A forma como se articulam independência, accountability e efetividade da justiça (sob seus diferentes significados), conceito que preferimos à eficiência, é o objeto do que vimos denominando uma Política Nacional da Justiça, com a qual se busca melhorar a governança judicial, a qual depende de uma abordagem multidisciplinar que possa ir além dos padrões legais estabelecidos (Ng, 2011).

A justiça tratada como política pública apresenta especificidades em relação a outras áreas de intervenção do Estado. Da mesma forma, a arquitetura do sistema de justiça possui singularidades relevantes na formulação e implementação de uma PNJ. Considerar essas particularidades é essencial para impulsionar e orientar o desenvolvimento dessa proposta.

Políticas públicas setoriais são parte importante dos programas de governo e dependem de entendimentos políticos entre os poderes Executivo e Legislativo para definir agenda e implementar programas para executá-las. A PNJ que se busca concretizar, embora deva ser considerada uma espécie do gênero política pública, apresenta algumas singularidades, em especial o fato de que sua concepção e execução requerem, no contexto brasileiro, uma forte atuação do Poder Judiciário, em especial do CNJ, a quem a Constituição atribuiu, nos termos do artigo 103-B, 4o da Constituição (Brasil, 1988) e do artigo 4o, XIV do seu Regimento Interno, as funções de planejamento central, gestão e correição do Poder Judiciário brasileiro.

Política pública e planejamento estratégico não sejam sinônimos mas estão intrinsecamente ligados. Um planejamento eficaz depende de diretrizes políticas bem estruturadas, assim como a execução eficiente de políticas públicas exige um planejamento adequado. Desde sua criação, o CNJ tem assumido o papel de principal formulador de políticas judiciárias, e em seu guia de políticas judiciárias programáticas conceitua o que denomina Política Judiciária Nacional como a “política instituída pelo CNJ, de caráter contínuo ou de vigência determinada, que impulsione o desenvolvimento pelos órgãos do Poder Judiciário de programas, projetos ou ações voltadas à efetivação da Estratégia Nacional do Poder Judiciário” (CNJ, 2023).

Esta estratégia é executada por meio de políticas programáticas por meio das quais o CNJ busca a solução de problemas relativos à atuação da justiça e seu papel na solução de problemas brasileiros, bem como ao funcionamento da estrutura de todo o sistema de justiça. É por isso que, sob a rótulo de Políticas Programáticas, o CNJ coordena e promove políticas internas da própria justiça, com foco na sua atuação e funcionamento, mas também políticas por meio das quais a justiça atua para auxiliar na solução de problemas brasileiros. São exemplos do primeiro tipo a Política de Auditoria Interna do Poder Judiciário, o Programa Justiça 4.0, a política Acessibilidade e Inclusão de Pessoas com Deficiência nos Órgãos do Poder Judiciário, a Política judiciária para Tratamento Adequado de Conflitos. A segunda espécie inclui a Política Nacional para a Primeira Infância, a Política judiciária sobre Pessoas Idosas e suas Interseccionalidades, a Política de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas, entre outras (CNJ, 2024).

As políticas judiciárias de que trata o CNJ não se confundem com a PNJ que se busca aqui caracterizar e construir. Embora ambas possam ter objetos e objetivos coincidentes em determinados momentos, o processo de construção, a formulação e a execução da PNJ é diversa. A formulação da PNJ tem uma dimensão política que responderia à questão: qual o modelo de justiça que queremos?

Algumas diretrizes da PNJ como, por exemplo, a autonomia e independência do Poder Judiciário, as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios, o ingresso na magistratura exclusivamente por concurso público, o desenho institucional do sistema de justiça e as atribuições do Supremo Tribunal Federal têm previsão constitucional e só poderiam ser alteradas por Emenda, depois de superadas a discussão sobre o seu caráter pétreo. Outros temas como, por exemplo, o modelo de magistratura, o perfil dos magistrados brasileiros, a distribuição orçamentária, a estrutura e funcionamento dos tribunais do país, as formas de garantia e promoção do acesso à justiça, o custeio deste mesmo acesso, a definição de prioridades na prestação jurisdicional, a estruturação da accountability da justiça e as formas pelas quais a justiça deve buscar a transparência, responsividade e responsabilidade perante à sociedade também independem de Emenda e devem ser questões debatidas pela sociedade e por todos os poderes instituídos, ultrapassando os limites do Poder Judiciário.

No contexto de um modelo do Estado aberto, a construção democrática de uma política pública de justiça no Brasil e o desenvolvimento de uma governança democrática para a justiça demandam amplo debate em fóruns específicos e discussões em processos que combinam representação, participação direta e deliberação de um conjunto amplo de stakeholders envolvidos, como previsto nas conferências públicas, que podem constituir-se em um modelo a inspirar a PNJ. Esse esforço de compartilhamento de poder é essencial para garantir tanto a accountability do Judiciário (dimensão poder da justiça) quanto a efetividade da prestação jurisdicional (dimensão serviço público), ambas indispensáveis para a concretização do Estado Democrático de Direito.

Conferências públicas a inspirar a discussão de uma política nacional de justiça

A Constituição brasileira estabelece mecanismos de representação e participação social como pilares do Estado Democrático de Direito, garantindo o envolvimento da sociedade em processos decisórios.

Por meio da representação, os cidadãos escolhem seus representantes pelo voto direto e periódico, assegurado nos artigos 14 e 45, enquanto instrumentos de participação direta, como plebiscito, referendo e iniciativa popular, previstos no artigo 14, permitem a manifestação sem mediadores da vontade popular.

Além disso, a Constituição (Brasil, 1988) consagra conselhos e audiências públicas como formas de participação institucionalizada, como se pode observar do disposto no artigo 198, que trata da gestão participativa no Sistema Único de Saúde (SUS), e no artigo 204, relacionado às políticas de assistência social. Esses dispositivos reforçam a inclusão da sociedade na formulação, execução e fiscalização de políticas públicas, promovendo um diálogo contínuo entre o poder público e os cidadãos.

A forma de participação, articulação e atuação dos atores nas políticas diferem-se conforme o objeto e a fase do ciclo de uma determinada política, mas seu caráter público, a inclusão e a diversidade necessárias à construção da sociedade justa que a Constituição exige, requer que ela seja gestada com a ampla participação da sociedade.

Além do útil e essencial protagonismo do CNJ na construção de uma política pública de justiça brasileira, este processo requer também o envolvimento conjunto dos demais Poderes de Estado e instituições públicas e privadas, de organizações da sociedade civil e de cidadãos, principais stakeholders envolvidos no processo de elaboração de uma política de justiça.

Avritzer (2012), em estudo sobre as relações entre estado e sociedade civil no período pós- democratização, identifica duas especificidades da articulação entre Estado e sociedade civil no Brasil. A primeira é a existência de uma relativa dependência desta em relação àquele, verificada especialmente na vigência dos governos de Lula e Dilma (2003-2014), que por seu cariz mais popular, fortaleceu o processo participativo para a efetivação de direitos sociais; a segunda é a marcante coexistência de diferentes espaços, processos e mecanismos participativos, tais como conferências, fóruns e conselhos gestores, criados para impulsionar uma maior participação social na consecução de políticas públicas. O estabelecimento destes espaços fez com que Fonseca (2019) identificasse no país um movimento para consolidar a participação social como método de governo, uma espécie de governança colaborativa que tem por objeto promover melhores políticas públicas.

Pogrebinschi e Ventura (2017), em estudo sobre as conferências públicas de saúde, a definem como “espaços de participação e deliberação da sociedade sobre políticas públicas” (p. 11). Os autores desenvolveram um modelo analítico para avaliar a correspondência das deliberações sobre políticas públicas das conferências com as ações no Congresso Nacional e concluíram, de forma talvez contraintuitiva que “de uma forma geral, as CNPPs tornam o Congresso Nacional mais responsivo. Os espaços participativos permitem que os representantes eleitos por meio do voto conheçam mais e melhor as preferências da sociedade, aumentando as chances de formularem políticas que a contemple ou dela se aproxime” (Pogrebinschi e Ventura, 2017, p. 34).

A saúde no Brasil é um “direito de todos e dever do Estado” (artigo 196), que está organizada em torno de um complexo SUS (artigo 198), cuja gestão é descentralizada e conta com a participação da comunidade (Brasil, 1988). Essa participação ocorre por meio de Conferências de Saúde e Conselhos Gestores, em nível federal, estadual e municipal (Brasil, 1990), os quais constituem-se em espaços onde representantes da sociedade civil, profissionais de saúde e gestores públicos discutem, planejam e fiscalizam a implementação das ações e serviços de saúde. As Conferências acontecem de 4 em 4 anos e estabelecem de forma democrática as diretrizes para a política nacional de saúde em seus respectivos âmbitos federativos. Os Conselhos Gestores são órgãos deliberativos e permanentes, de composição paritária, nos quais se delibera sobre temas como a alocação de recursos, a definição de prioridades no atendimento, a formulação de políticas públicas e a avaliação da execução dos serviços de saúde. Além disso, são responsáveis por acompanhar e fiscalizar a aplicação dos recursos públicos, promovendo maior transparência e accountability na gestão do SUS. Por sua natureza participativa, o Conselho Gestor de Saúde fortalece o princípio da equidade e contribui para a construção de um sistema de saúde mais inclusivo e eficiente.

As conferências públicas e os conselhos gestores de políticas são alguns de exemplos de interfaces socioestatais, os quais consistem “num espaço de negociação e conflito, estabelecido intencionalmente entre atores, cujos resultado podem gerar tanto implicações coletivas, quanto implicações estritamente individuais” (Hevia e Isunza Vera, 2010, p. 61). Eles têm um caráter híbrido que resulta da combinação da participação estatal e não estatal em espaços de construção, conformação e gestão de políticas pública.

Estes espaços têm o “potencial de qualificar a capacidade do Estado, construindo instrumentos eficazes de planejamento, execução monitoramento e avaliação de políticas públicas e, ao mesmo tempo, fortalecer o processo de escuta e envolvimento de sociedade na construção dessas mesmas políticas” (Pires e Vaz, 2014, p. 8). Para esses autores, o conceito apresenta “maior capacidade, em termos de alcance e precisão, na compreensão e explicação tanto de complexidade quando da variabilidade dos canais de interlocução existentes atualmente entre Estado e sociedade no país” (Lopez e Pires, 2010, p. 9).

De fato, como preconiza Souza et al., (2013), as conferências públicas podem ser entendidas como “processos participativos de larga escala, voltadas para discussão de políticas públicas a partir do diálogo entre representantes do governo e da sociedade, envolvendo diferentes níveis da Federação” (p.7).

As conferências públicas expressam o diálogo entre as vertentes de teorias democráticas representativas de um lado, e participativas e deliberativas de outro. Fonseca (2019), na defesa da Participação Social como Método de Governo, realizado para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadas (IPEA), apresenta um detalhamento dos modelos democráticos que ele denomina “puros” e das vantagens que a associação de modelos híbridos de democracia, o dos sistemas deliberativos, do norte, e a vertente participativa, do sul, para a análise do processo de construção de políticas públicas por meio de interfaces socioestatais, especialmente conferências nacionais.

Entre as possíveis vantagens desta hibridização de teorias democráticas representativas, deliberativas e participativas para a constituição de uma política pública de justiça, ele aponta: a superação de um certo preconceito com a ideia de representação que decorre do caráter elitista que o processo de representação adquiriu; a articulação entre representação, deliberação e participação em um só fórum ou arena, e a combinação e diferentes fóruns para alcançar a construções de propostas e deliberação; a aproximação entre construções teóricas e experiências práticas; a combinação de conhecimento experto e comum na construção de políticas, facilitado pela diversidade dos stakeholders envolvidos no processo; a superação da deliberação majoritária pela busca da deliberação possível, eventualmente combinando consentimento e consenso progressivo, em substituição à tentativa de reproduzir a esfera deliberativa ideal; o reconhecimento do conflito como uma condição inerente à democracia e não como um problema a ser combatido, bem como a possibilidade de defender interesses e fazer advocacy; a inclusão de diferentes atores em todos os ciclos das políticas públicas; a articulação entre espaços institucionalizados e informais no processo de participação e deliberação.

Algumas dessas características são encontradas nas experiências de construção de políticas públicas e de instituições participativas que podem servir de inspiração e parâmetro para a construção de uma PNJ.

A Construção participativa de uma política nacional de justiça e a governança democrática judicial

Discussões sobre a democratização da justiça antecederam a criação do CNJ, mas sua inserção na estrutura do sistema de justiça brasileiro foi essencial para que se começassem a desenvolver no país estudos sobre o Poder Judiciário e seu planejamento estratégico, e para a necessidade de compreendê-lo e analisá-lo à luz da administração pública, do direito administrativo e da gestão pública.

Passados quase 20 anos da criação do CNJ, é inquestionável sua ação para, na moldura da independência do Poder Judiciário, ampliar a accountability deste Poder, mas esta ampliação contrasta com um relativo esgotamento da capacidade de o Judiciário transpor o seu isolamento e elitismo para construir de forma participativa uma política de justiça, capaz de garantir um direito fundamental e prover um serviço essencial ao cidadão.

O processo para tornar uma instituição ou um conjunto delas accountable é longo e envolve melhorias na sua transparência, responsividade e capacidade de responsabilização dos agentes envolvidos. Os avanços promovidos pelo CNJ no que diz respeito à transparência do Judiciário são inquestionáveis, e a evolução do relatório Justiça em Números é apenas um exemplo da quantidade e qualidade dos dados coletados, das informações obtidas e do conhecimento gerado. As dimensões de responsividade e responsabilização, contudo, ainda estão secundarizadas.

O relativo sucesso com que o CNJ tem conseguido ampliar a transparência do Judiciário, contrasta com os ainda muito tímidos avanços em propostas que promovam a accountability social da justiça (Malena et al., 2004; Barbosa, 2021) porque esta pressupõe o compartilhamento de poder, o que provoca forte resistência no campo da justiça.

A participação requerida de atores externos ao campo do direito na construção de uma política pública de justiça refletiria, em termos das categorias tomadas de Bourdieu (1983), o embate entre a ortodoxia (instituições judiciárias e juristas) e a heterodoxia (organizações externas ao campo da justiça, cidadãos, etc.), no campo (o espaço da política de justiça), com o potencial de transpor o habitus e promover, a partir daí, a democratização possível no campo da justiça (Tavares Neto, 2021).

Apesar das dificuldades, os espaços que demandam participação da sociedade (organizações da sociedade civil, cidadãos, peritos, ouvidores, entre outros) na justiça têm sido ampliados, seja no que concerne à jurisdição (justiça como serviço público), seja no que se refere à governança judicial (justiça como poder). É o que se verifica, por exemplo, no campo da tomada de decisão em processos estruturais, na mediação e arbitragem, na justiça restaurativa e no tribunal do júri, situações em que o poder de decisão é compartilhado com a sociedade; quando se trata de simples apoio à tomada de decisão, as audiências públicas, os amici curiae e as perícias auxiliam os magistrados e trazem conhecimento experto para instruí-las.

No âmbito da administração da justiça, a produção de dados e geração de informações, a criação de ouvidorias, a profissionalização da gestão das unidades judiciais, a participação da Ordem dos Advogados na seleção de magistrados, são iniciativas que também contam com a participação externa.

Especificamente para a gestão do serviço judiciário, a contratação de profissionais de formação diferente da jurídica, como os comunicadores sociais, estatísticos, especialistas informáticos, contadores, gestores públicos e privados, especialistas ambientais, arquitetos, psicólogos, bem como a criação de comissões especiais com espaços à participação de profissionais externos à justiça, são exemplos de abertura do Judiciário a atores externos que podem contribuir para a ampliação da accountability social da justiça (Barbosa, 2021).

Contudo, apesar dos esforços capitaneados pelo CNJ em dialogar com a sociedade, seu próprio desenho institucional (composição, competências, funcionamento etc.), ao invés de favorecer, constitui-se em um obstáculo à participação social na formulação de uma PNJ, razão adicional para que se defenda a utilidade de interfaces socioestatais. O conceito de interfaces e a arquitetura das conferências públicas e dos conselhos gestores, que pressupõem ação integrada e coordenada de entes públicos e privados, instituições e pessoas, além de órgãos dos demais Poderes de Estado na consecução de políticas públicas, viabilizaria uma ação coordenada entre o CNJ, membros do Legislativo e do Executivo e sociedade civil para debater e deliberar a respeito do modelo de justiça que se busca. Esta arquitetura seria um primeiro passo para a maior abertura do sistema de justiça à sociedade e é essencial para que se possa começar a superar a ideia de que justiça é monopólio do Poder Judiciário.

A pluridimensionalidade da justiça, como constitucionalmente tratada, bem como as dimensões reveladas quando se discrimina os termos policy, ao especificarem diferentes contextos para o uso dos signos justiça e política, permitem que se definam propostas e debates sobre seus diferentes âmbitos, o que pode favorecer a construção de consensos possíveis na construção participativa de uma PNJ.

No contexto sociopolítico atual, a participação, mas não o protagonismo, do CNJ é essencial, seja pela expertise de seu papel, seja pela legitimidade da atuação no campo interno da Justiça. Por esta razão, defende-se que o exemplo de conferências públicas nacionais, como um tipo de interface socioestatal, que pressupõe pluralidade de atores e papeis, pode contribuir para a formulação participativa da PNJ, diminuir a resistência do Judiciário (poder) para compartilhar as diretrizes que forjam uma PNJ, podendo gerar resultados frutuosos.

É certo que uma PNJ não isola a dimensão policies das demais e há diferentes situações em que haverá sobreposição e conflito. Mesmo assim, o fato de se diferenciar quatro dimensões da justiça facilita o diálogo do judiciário com os demais poderes e a sociedade em torno de temas que podem subsidiar a construção democrática de uma PNJ.

As conferências públicas, além de trazer a campo diferentes atores que dialogam em torno de temas comuns, uma condição necessária no campo da justiça, resultam de um processo no qual comunicam- se diferentes propostas que podem com frequência ser interdependentes, sendo natural que haja certa tensão, incapaz, espera-se, de impedir consensos progressivos em torno do que se entende serem as melhores opções. Diferente da regra majoritária, em que a deliberação vencedora é a que resulta da vontade manifesta da maioria do corpo votante, o consenso progressivo é um processo argumentativo no qual o diálogo aberto, inclusivo e motivado por interesses comuns busca alcançar a melhor decisão possível, ainda que possa ser provisória e revista quando novas condições se impuserem (Pogrebinschi e Santos, 2011).

Além da multiplicidade de atores, um segundo fator que enseja a conferência nacional como um processo a inspirar uma PNJ, é que a justiça brasileira tem uma enorme capilaridade, o que facilita a organização de estruturas para realizar debates, promover fóruns e criar um competente sistema de consecução da política judiciária nacional.

Um terceiro elemento facilitador para a realização de conferências públicas de justiça é a quantidade e qualidade dos servidores que integram a organização judiciária, quase todos concursados e com um profundo conhecimento do seu espaço de atuação.

Um quarto elemento, importantíssimo, é o orçamento destinado à área e a autonomia em sua gestão, que facilita a realização dos debates e discussões necessárias à PNJ.

Por último, e não menos importante, o forte impulsionamento no uso das TIC em quase todos os órgãos e funções da justiça, perfeitamente demonstrados pelo alto índice de digitalização da justiça brasileira, o que pode facilitar a participação direta ou semidireta de juristas, jurisdicionados e cidadãos em geral nos debates em torno da justiça.

A assunção de uma PNJ como espécie do gênero política pública, e a proposta de promover uma conferência nacional de justiça, construída por meio de processos participativos, resultariam na ampliação da accountability da justiça, em sua governança democrática e na democratização do Judiciário, uma condição necessária para que se possa reconstruir a legitimação da justiça.

Conclusões

O constituinte brasileiro expôs na Constituição as bases de funcionamento e atuação do Judiciário brasileiro, mas a multidimensionalidade da justiça revelada na Carta brasileira está a exigir a construção participativa e democrática de uma política nacional para a justiça brasileira, de maneira a ampliar a sua governança, isto é, melhorar os arranjos internos de maneira que eles possam estruturar as relações entre provedores, beneficiários e grupos excluídos.

A construção de uma PNJ representa um desafio essencial para a democratização e efetividade do sistema judiciário no Brasil. O campo da justiça, visto como política pública, deve integrar as múltiplas dimensões da justiça - valor, direito, poder e serviço público - para responder de maneira eficiente e inclusiva às demandas da sociedade. Essa política deve estar alinhada aos princípios do Estado aberto, promovendo transparência, participação cidadã e colaboração entre os diferentes atores sociais e institucionais. A ampliação do acesso à justiça, conforme estabelecido pela Constituição, exige um sistema capaz de oferecer decisões céleres, equitativas e eficazes, assegurando não apenas a resolução de conflitos, mas também a proteção de direitos fundamentais.

A governança democrática surge como elemento central para consolidar uma justiça mais acessível e legitima. A adoção de processos participativos e colaborativos, inspirados em modelos como as conferências públicas e conselhos de gestão, é essencial para aproximar o Judiciário dos cidadãos, superando o isolamento histórico do setor. Essa aproximação promove a accountability do sistema, equilibrando a autonomia necessária ao exercício das funções judiciais com a transparência e a responsividade que caracterizam um Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, o papel do CNJ como formulador de políticas judiciárias é crucial, mas deve ser complementado por mecanismos que garantam uma governança mais aberta e inclusiva, permitindo a participação efetiva da sociedade civil, do setor privado e de outros órgãos do Estado. Essa abordagem fortalece a construção de uma justiça alinhada aos princípios do Estado aberto, contribuindo para a consolidação de uma sociedade mais justa, livre e solidária. Uma PNJ ancorada nesses valores não apenas reforçará a legitimidade do Judiciário, mas também servirá como pilar para o desenvolvimento democrático e a promoção de direitos no Brasil.